A Opressão do Batom Vermelho

Por Lis 
Almoçamos num restaurante ontem. 
Eu gosto de restaurantes. 
Mas como aconteceu, nunca aconteceu. Não volto lá nunca mais.  

Eu reparei que muitos homens me observaram de um jeito estranho, meio hostil, meio sei lá. As mulheres também, os garçons, até algumas crianças. 

Eu juro, não era impressão minha.
Eu tinha certeza de que ontem eu não era eu. 

Eu me deixei em casa; quem saiu é alguém que ninguém gostaria de ser. 
Ontem eu era um tanto de significados, um tanto de coisas objetas e abjetas. 
Ontem eu era apenas uma boca.
Uma boca non grata... num restaurante.
Representando apetites inapropriados para a ocasião. 

Eu me contrariei, me sabotei, me traí. Sem querer.  

Até perdi o apetite. Desejei muita gastrite e indigestão. Desejei algumas mortes. 
Mas sabe aquele sentimento de impotência? 

Então. Prefiro evitar a fadiga: depois de ontem, batom vermelho nunca mais. 


Assombração não sabe pra quem aparece...

É que eu confio desconfiando, sabe? 

E Assombração nem desconfia que eu desconfio. 

Eu confio muito na minha própria desconfiança. 
Nunca errei. 
Sei que Assombração sempre aparece. 

Assombração confia muito em si mesma, mas sempre erra. 
Não sabe pra quem aparece, e nem desconfia que apareceu, quando tentou ganhar logo a minha confiança.  

Viajados e Viajantes

por Lis 


Particularmente, eu não gosto de viajar. E isso não tem nada a ver com medo de avião, ou da BR 381, nem com preguiça, problemas em fazer as necessidades fora de casa, etc. 
Se eu tiver de ir, sem dúvida parte mais legal do passeio será a volta. 

Porque eu comecei muito cedo a vida de viajante, já morei em vários lugares, e em quatro países diferentes. Eu não me lembro de muita coisa de antes da vida no Brasil, porque eu era criança. E é meio triste não ter nada pra falar de uma infância nômade, sem histórias, sem amizades, sem vínculos. 

Enfim. 

Tem gente que diz que viajar enriquece o intelecto, amadurece, abre a mente
Concordo, mas isso depende da pessoa que vai, não do destino. Entre aqueles que vão, estão os viajados e os viajantes. 

Os viajados são deslumbrados e gostam de luxo. Adoram ostentação. Acham que são refinados, cultos e respeitáveis só por terem pisado na Europa e acham que a Europa é o lugar mais perfeito do mundo. Quem disse que eles querem saber de outro continente? Necas. Aliás, eles não querem saber de nada, exceto da impressão que vão causar quando postarem as fotos das viagens nas redes sociais. 

Por serem deslumbrados, eles são os únicos que conseguiriam voltar para casa piores, mesmo se rodassem o mundo inteiro. 
Pois eles são acometidos por um terrível complexo de inferioridade quando tem contato com outras culturas. Adoram denegrir a imagem do país de nascença, e ainda acham que tem autoridade pra fazer isso, só porque conhecem "lá fora". Pior, os viajados acham que criticar o próprio país garantirá a simpatia do estrangeiro. 

Mas os viajantes são outra casta de gente - obviamente o contrário dos viajados. São pessoas que enfrentaram os próprios medos e limitações. Sabem se virar; não temem o novo e estão sempre prontos para o que der e vier. 

Depois de ter contato com outras culturas, essas pessoas acabam desenvolvendo uma apreciação profunda pela vida. 
Os viajantes conseguem enxergar a beleza em volta, nos detalhes, nos aromas, nas cores, nos costumes. São pessoas simples que possuem uma visão bem ampla do comportamento humano. São mais tolerantes e tendem a interpretar os fatos sem moralizações, sem emitir juízos maniqueístas de valor, pois sabem que certo e errado, bonito e feio é questão de latitude e longitude. E mesmo presenciando tanta diversidade, eles ainda são capazes de reconhecer que os humanos são os mesmos em todo lugar, são igualmente complexos e dignos de respeito.  

Como eu disse, eu só não gosto de viajar por excesso, não por falta (não sendo isso um privilégio, já que não foi uma escolha minha).

Mas quem gosta, já conhece o mantra: 

"Viajar é a única coisa que você compra que te faz mais rico".